terça-feira, agosto 30, 2005

Arrependimento

O arrependimento é um sentimento terrível, a um tempo destruidor, aniquilante e claustrofóbico. É a culpa encarnada e aceite e o peso íntimo e terrível de que nenhuma força, nenhuma influência exterior pode servir de escudo ao desconsolo e à inanidade íntima em que sentimos flutuar cambaleante e numa deriva absurda a nossa alma. Uma vontade esmagadora e opressora de nos libertarmos de nós mesmos, de, à semelhança de uma animal brutalizado, imbecil, selvagem nos sentirmos agrilhoados e asfixiados com a nossa própria pessoalidade e força vital. É de nós mesmos que fugimos, do nosso passado, da nossa potencialidade, da nossa probabilidade, daquela parte nossa, indelevelmente nossa, perpetuamente nossa, gravada naquele instante em que cometemos as faltas que queríamos e as consequências que não queríamos.
A consciência, a crença na análise fria e emocional das emoções, essa viagem ao coração das trevas como crença de catarse, de regeneração, de uma “inter-zona” de consciência que se confunde com a própria verdade da consciência e que purga o carácter pelo simples facto de a termos atingido; toda essa crença existencialista na força intrínseca de uma carácter recto e probo, corajoso e disposto a combater o venal, onde as forças pareciam esgotar-se e a racionalidade turvar-se; mas sobretudo a crença que no fim de tudo está a redenção, a lavagem interior e a força vital de seguir em frente revigorado e desassombrado, como se o Santo Graal estivesse em nós e através de nós se extravasasse sacramentalmente; tudo isto não passa de uma crença humanista grosseira (ainda que apelativa) em que alguns homens fortes julgam encontram as ferramentas e a ordem lúcida de valores e padrões que racionalizam as suas acções e condutas em relação ao Bem e à consumação; mas é também uma imperdoável falta de vistas, uma insensibilidade abstrusa e perigosa aos imponderáveis, às zonas negras e ocultas, às portas fechadas e pejadas de crime, pusilanimidade e corrupção eventual que habitam cada um de nós e a natureza exterior. É a posição autista de Prometeu e da sua caixa de pandora, essa mesma posição que tenta irmanar o homem não com Deus, mas com os Demónios.
Aceitemos que há imponderáveis em nós, aceitemos que nem todas as nossas acções têm uma lógica interna, uma justificação provável ou uma causa última; aceitemos o imponderável, o absurdo e o ilógico de certas realidades passadas tão presentes e certamente também futuras, que à laia da indescortinavéis, mas sobretudo por serem portadoras de efeitos nefastos por qualquer razão que o tenha assim determinado, comodamente gostamos de remoer e ruminar racionalmente, passionalmente, clamorosamente, sofridamente e de situar como remorsos, algo que não era suposto termos feito, ou que nem sequer sabemos porque fizemos.
O ponto aqui é mesmo este, nem sempre sabemos o que fazemos, aliás muitas vezes não fazemos a mais pequena ideia do que estamos a fazer.
Foi assim e continuará a ser assim no futuro, tão certamente como estarmos vivos e como reconhecermos, e não necessariamente gostarmos, que não somos imunes aos imponderáveis e às acções negras e inexplicáveis que em nós se insinuam e se metamorfoseiam gradualmente de insinuações a pensamentos, de pensamentos a ideias e de ideias em acções.
Tal e qual como o mal que todos nós guardamos dentro de nós, escondido, medroso, encafuado na sua poça de negação e incredulidade, no espaço intermédio e lodoso entre o que somos e o que queremos ser, esse interstício doloroso da natureza e da consciência.
A essência do mal também reside aí, nesse imponderável, nessa capacidade que todos nós temos de o fazer de várias maneiras, racionalmente ( o mal consciente e frio também existe o que choca consciências- na dupla vertente de “estádio de iluminação racional” e “estado de iluminação moral” que esta palavra tão perigosa e indistintamente comporta) ou bestialmente, estúpida e imponderadamente.
Essas acções estúpidas e imponderadas em nós e nos outros existem: negá-las em nós é negarmo-nos, enojarmo-nos, consumirmo-nos; negá-las nos outros é magoarmo-nos, desiludirmo-nos e sofrermos.
E aceitá-las também.

Realidades

Quando o valor de uma ausência é mais presente do que a presença da "coisa" em si, é porque a realidade anda difícil.