sábado, novembro 26, 2005

Moro na cidade do pecado

Moro na cidade do pecado,
em terra nenhuma…
no desiderato dos horrores,
na espuma pardacenta do tempo,
e na encruzilhada da esperança,
erigiu-se a minha casa.

Nas liquefeitas alquimias
de sonhos vergastados e densos
(como se tornaram pequenos e vagos...)
Com cinzas de pensamento -
Esse lodo,
Onde voariam pássaros celestes,
e círculos imaginários de éter
carregados de epilepsia,
neuróticos pilares de alma,
encontrei enfim a minha pertença.

A minha paz podre,
E a desesperança,
Humanizaram-se e desceram a terra.

O coração do homem é o seu reino,
E a sua casa sem brasões.

quinta-feira, novembro 24, 2005

Ainda ela

Tanto tempo, tantas lágrimas meu amor.
Tanta fraqueza, tanto orgulho, tanta sinceridade.
Tantos impulsos, tantos travões, tantas explosões atómicas e campas vazias,
tanto vento sobre o nada, a estepe longa e veloz, e aquele sibilar macabro…. schhh….schhhh. schh….
e depois o nada, a morte, e as memórias.
Tanta dor, tanta dor...
este desalento cobarde, esta explosão de alma, esta expansividade inerte.
Meu deus! Quando é que chegámos a este estado? A esta morte?
Procuro em mim um poço, uma regeneração, uma paisagem, mas grito por Deus,
e as lágrimas moles, os punhos duros, o coração alquebrado…
tudo isto fazem de mim um ser incongruente e brando, alguém pesado e cansado.
Não baixei os braços meu amor, mas o tempo desfez-se e a esperança morreu.
Este é um último adeus, daqueles adeuses íntimos e secretos, daqueles que não se vão embora.

Ainda ela, ainda ela, ainda ela…
Uma obsessão.
E novamente a vida chama por mim.
Rotineiramente.
Ainda este coração rijo, pesado como um infinito sem fundo.
Ainda e sempre esta dor.
Paciência, faz-te homem.
É isto um homem? Onde está Cristo?
Onde está Cristo?

Ainda ela e a vida lá fora, a humanidade em disfarces e ocupações,
eu em disfarces e ocupações.
Esta estranha alquimia da dor e dos pensamentos negros,
E esta vaidade passional,
Esta força incrível que me puxa pra cima.
É o amor dos homens,
De si mesmos?
É a sua vingança?
A sua sobrevivência natural?
Cristo?
Talvez Cristo, essa força pura e regeneradora
Obrigado senhor!
Um pecador agradece.

Mas não, nada disto.
É ainda ela, o meu amor eterno.
A minha dor presente.
Ainda ela…
Porque não volta?
Porque não vem aplacar-me?

Sim eu também fui egoísta, e frio
E leve
Despreocupado e inconsequente até,
Aparentemente feliz.
Parece-me que fui criança há cem anos.
E que há cem anos sabia quem eras,
Éramos um no outro.

Ainda ela?
Quem é ela?
Morreu!
Morreu!
Morreu!
Três vezes morreu
Quantas vezes lhe chorei a morte,
E esperei por seu amor.

Ainda…
Ela.

terça-feira, agosto 30, 2005

Arrependimento

O arrependimento é um sentimento terrível, a um tempo destruidor, aniquilante e claustrofóbico. É a culpa encarnada e aceite e o peso íntimo e terrível de que nenhuma força, nenhuma influência exterior pode servir de escudo ao desconsolo e à inanidade íntima em que sentimos flutuar cambaleante e numa deriva absurda a nossa alma. Uma vontade esmagadora e opressora de nos libertarmos de nós mesmos, de, à semelhança de uma animal brutalizado, imbecil, selvagem nos sentirmos agrilhoados e asfixiados com a nossa própria pessoalidade e força vital. É de nós mesmos que fugimos, do nosso passado, da nossa potencialidade, da nossa probabilidade, daquela parte nossa, indelevelmente nossa, perpetuamente nossa, gravada naquele instante em que cometemos as faltas que queríamos e as consequências que não queríamos.
A consciência, a crença na análise fria e emocional das emoções, essa viagem ao coração das trevas como crença de catarse, de regeneração, de uma “inter-zona” de consciência que se confunde com a própria verdade da consciência e que purga o carácter pelo simples facto de a termos atingido; toda essa crença existencialista na força intrínseca de uma carácter recto e probo, corajoso e disposto a combater o venal, onde as forças pareciam esgotar-se e a racionalidade turvar-se; mas sobretudo a crença que no fim de tudo está a redenção, a lavagem interior e a força vital de seguir em frente revigorado e desassombrado, como se o Santo Graal estivesse em nós e através de nós se extravasasse sacramentalmente; tudo isto não passa de uma crença humanista grosseira (ainda que apelativa) em que alguns homens fortes julgam encontram as ferramentas e a ordem lúcida de valores e padrões que racionalizam as suas acções e condutas em relação ao Bem e à consumação; mas é também uma imperdoável falta de vistas, uma insensibilidade abstrusa e perigosa aos imponderáveis, às zonas negras e ocultas, às portas fechadas e pejadas de crime, pusilanimidade e corrupção eventual que habitam cada um de nós e a natureza exterior. É a posição autista de Prometeu e da sua caixa de pandora, essa mesma posição que tenta irmanar o homem não com Deus, mas com os Demónios.
Aceitemos que há imponderáveis em nós, aceitemos que nem todas as nossas acções têm uma lógica interna, uma justificação provável ou uma causa última; aceitemos o imponderável, o absurdo e o ilógico de certas realidades passadas tão presentes e certamente também futuras, que à laia da indescortinavéis, mas sobretudo por serem portadoras de efeitos nefastos por qualquer razão que o tenha assim determinado, comodamente gostamos de remoer e ruminar racionalmente, passionalmente, clamorosamente, sofridamente e de situar como remorsos, algo que não era suposto termos feito, ou que nem sequer sabemos porque fizemos.
O ponto aqui é mesmo este, nem sempre sabemos o que fazemos, aliás muitas vezes não fazemos a mais pequena ideia do que estamos a fazer.
Foi assim e continuará a ser assim no futuro, tão certamente como estarmos vivos e como reconhecermos, e não necessariamente gostarmos, que não somos imunes aos imponderáveis e às acções negras e inexplicáveis que em nós se insinuam e se metamorfoseiam gradualmente de insinuações a pensamentos, de pensamentos a ideias e de ideias em acções.
Tal e qual como o mal que todos nós guardamos dentro de nós, escondido, medroso, encafuado na sua poça de negação e incredulidade, no espaço intermédio e lodoso entre o que somos e o que queremos ser, esse interstício doloroso da natureza e da consciência.
A essência do mal também reside aí, nesse imponderável, nessa capacidade que todos nós temos de o fazer de várias maneiras, racionalmente ( o mal consciente e frio também existe o que choca consciências- na dupla vertente de “estádio de iluminação racional” e “estado de iluminação moral” que esta palavra tão perigosa e indistintamente comporta) ou bestialmente, estúpida e imponderadamente.
Essas acções estúpidas e imponderadas em nós e nos outros existem: negá-las em nós é negarmo-nos, enojarmo-nos, consumirmo-nos; negá-las nos outros é magoarmo-nos, desiludirmo-nos e sofrermos.
E aceitá-las também.

Realidades

Quando o valor de uma ausência é mais presente do que a presença da "coisa" em si, é porque a realidade anda difícil.

domingo, junho 26, 2005

Até nunca...

Sim, sim eu volto já... vou só ali comprar tabaco...

O jovem apaixonado

- Papá, papá, estou apaixonado, que coisa maravilhosa. Nunca antes havia experimentado uma sensação tão pura, uma necessidade tão grande e tão completa, uma liberdade tão esfusiante, tenho vontade de agarrar o mundo e beijá-lo, tenho vontade de violar a vida.
- E estás... a tua.

O meu espaço

O meu espaço é um espaço desencantado, mas é o meu encantamento. É desencantado porque solitário, desiludido, autista e cego.
Mas em compensação, quando encontro uma luz, é mesmo uma luz, uma irradiação, uma iluminação, e não o conjunto de fogachos fátuos e de mosaicos que norteiam outras paragens, essas sim, na escuridão.

terça-feira, maio 03, 2005

O Julgamento

I.
A tarde espalhava um sol soalheiro e preguiçoso sobre a cidade, convidando ao refresco e ao despreocupado repasto. Sempre gostei dessas tardes na baixa da cidade em que um ameno e tranquilo pôr do sol nos degusta frugalmente a disposição em anquilosado e deleitoso “rien faire”.
Mas não: ia eu apenas subindo apressada e atabalhoadamente as escadarias nobres e dignas que conduzem ao “Templo da Justiça” da Capital– a objectiva saltaricarando no meu peito baques incómodos, o caderno de notas sempre em vias de cair – . Tinha de fazer sozinho a cobertura do afamado julgamento para “A Gazeta da Semana” e para tanto me faltava o interesse, pois desconhecia em completo que raio de julgamento era esta. De uma coisa estava certo, em toda a cidade não se falava de outra coisa, todos entoavam nos cafés, restaurantes, nas praças (chegou até a aparecer anunciado no telejornal) este extravagante julgamento, sem que porém ninguém soubesse esclarecer quem quer que fosse acerca de que tipo de assunto se iria ali tratar.
Quem iria ser julado ou porquê? Jamais perceberei este insolito e demente interesse.
Tanto bruá não me deixava curioso, apenas vagamente entediado, e era com anelo e sacrifico que pensava no meu plácido e impagável entardecer temperado de cerveja e muito sossego.
Mas era trabalho.
O “Templo”é um edifico austero e digno, masjestaticamente irreal e sólido. Para os meus colegas era apenas uma bela a misteriosa peça de arquitectura. Para mim porém sempre foi como um irmão mais velho ou um pai zeloso que cuida imperceptível e fielmente de nós, sereno e confiante... absoluto. Gostava tanto do Tempo que era quase medo a única sombra de sentimento que experimentei ao lá entrar, lá onde não teria pelas costas essa força imorredora e omnipresente para me protejer. Estranho e histérico paradoxo, mas bem real. No Templo não há lugar para o erro, a confiança é total e a sua moral infalível. Para todos os habitantes da cidade, o "Templo" é a verdade.
Olhei perdida e absortamente para todos quantos lá estavam enquanto. Além uma família de bons modos e bons costumes, o cão não pode entrar infelizmente para a filha mais nova... a D. há-de-ter-um-nome da padaria, o coronel reformado e viúvo, o velho misantropo e filantrópico- diz-se- que vive num quarto de aluguer, mas com fortuna... até os ateus da sociedade vieram, a massa de todos os dias e os alienados das convenções... quem sabe se da razão? todos vieram... um clima de antologia, o dia será inolvidável!
Entrei e instalei-me com dificuldade na sala atulhada e transpirada. O bruá era tamanho que eu podia ouvir distintamente o chorrilho de apostas que eram cuspidas do outro lado da sala:
- Inocente claro!
- Qual quê meu caro! Não tem safa, aqui ninguém tem safa!
E num outro canto mais distante:
- Roubo já disse… roubo!
- Roubo de quê?
- Roubo já disse! Não interessa…é roubo!
-Mas que raio, não estaria aqui se fosse roubo! O “Templo da Justiça!” só funciona para assuntos importantes. Roubos há muitos…
- Matou alguém do Estado!
-Alguém da bola!
- Alguém do mundo VIP!
- Mas isso é terrível!
- Aposto nisso!
- Também eu!
- Eu entro nessa!
- Que escândalo! Alguém famoso ele deve ter morto…
Eis que subitamente um oficial de justiça trajando de negro e caminhando devagar, solenemente declara:
- Está aberta a Sessão.
E fez-se silêncio.

Século da Imagem

Para o bem e para o mal este é o século da imagem, dizia Andre Malraux qualquer coisa como isto. Isso é perigosamente verdade. Outros séculos tiveram mais aforunado substrato: o poder, o talento ou o trabalho.
Na era em que vivemos tudo isto se resume à imagem: condição régia para se singrar, pelo menos em actividades públicas, e claro do entretenimento.
Isso é gravíssimo e às vezes, como hoje, deixa-me mais triste que indiferente ou revoltado. Exprime não um vício ou uma vileza especialmente condenável no Homem, mas apenas- o que é mais claustrofóbico e entristecedor- a sua natureza.
Também eu presto um culto desabrabrido e obsceno a essa plasticidade enfatuada, a essa falaz beleza: lúxuria labrega.

Idealismo vs. Pragmatismo

A primeira pedra de Auschwitz começou a ser emparelhada da boca de Hitler, anos antes da sua construção real.

Senso nu

Latejam-me as fontes, lateja-me o pensamento. Este momento tão sem-nexo, tão absurdo e sentimental, é um nada fátuo e vazio, nem mesquinha consolação, nem sombra de pensamento. Somente uma hipertrofia sensitiva, tensa e aflita, inútil e asfixiante, esfusiante, opressora. Abri a porta à beleza e à dor, ao amor de todas as coisas, à inconsequente e destrambelhada felicidade. Uma felicidade disléxica e manca, sem defesa.
Mas estou assim possuído, confusa e infantilmente possuído, Pessoído, entregue ao sentimento fugaz, abandonado a um ostracismo universal.
“As dores do Mundo” no dizer dos alemães- és isto que eu sinto;tu me pega pelos tornozelos da alma até ao céu de abismo e cândida efermidade. Corrupio, confusão, agitação e vazio…. inocente e plácido, implacável e estúpido. É uma morte sem rosto, como a Morte, mas ao mesmo tempo é a vida e o desalento histérico das sensações conjuntas.
Logicamente e metafisicamente nada; um arco-íris sensorial inflamado e frio, contrário, complexo e despido.
Dizem que Brahms queria abraçar o mundo inteiro… que bela e infantil quimera, que desvario tão sumptuoso, singelo, paternal e pertencioso, comovedoramente idiota. Não literalmente mas espiritualmente, intuidamente… quanta beleza nas sensações.
Bombas, bombas, bombas… quanto coaos ordenado!... afrodisíaco apocalipse, um orientalismo extravagante da consciência, uma afronta fétida e suave à razão!
Uma guerra estoura lá fora… uma guerra na minha cabeça pelo menos… uma guerra sem soldados, sem mortos e sem generais, bombas apenas. Bombas e fogo, riso e comedimento, não é a desmesura a medida dos sonhos, eles são afáveis, aprazivelmente clássicos e agradavelmente comedidos.
Assobiam as bombas como flautas. São um entretenimento, um pouco perigoso talvez, mas tão maravilhosamente inconsequente…
É doce poder brincar assim com este fogo imaginário, não real, antes previsto... flama literária e ancestral: chama que não queima só aquece…
Como é bom ver essas bombas, a ti o digo: tu que brincas despreocupado e leve… ouves o troar como eu o ouço? Não te fazem as chamas tremer a alma e suar o corpo como a mim? Não as vês como eu, ali ao fundo ao pé daquela despreocupada criança? Além perseguindo aquele velho absorto? Não sentes o cheiro a fogo, a carne, a caos, a descontrolo?
Não sentes como eu medo deste fogo? Não te sobem ao cérebro vómitos de um indómito, inenarável e primitivo horror? esse horror inefável e ilógico, despido de sorte e de contexto?
Não te queima nas entranhas do abismo e da animalidade? Onde está a marca visível desse fumo fétido e tangível?
Não a sentes como eu?
Diz-me então quem és, serás tu também um Homem como eu sou?
Se é vida, se é morte eu não sei, mas horroriza-me ao até ao mais fundo de mim, até aos alicerces do meu poço de inteligentsia- que é onde começa a torpe e desejada inconsciência: a anestesia da dor e do belo, a capa do possível…
Tu como eu o sentes, sim eu sei. Tu como eu tens medo e és criança no escuro. Tu como eu te drogas de realidade, de possibilidade e de verosimilhança. Talvez não acordes à noite como eu, mas como eu tudo isto já sentiste.
Ergue-te irmão, despede-te desse sonho vão, abandona sentimentalmente as tuas ilustações e solta furtivamente a tua gnose: é chegada a hora...
Acorda!

Abdulyasser

terça-feira, abril 19, 2005

Fumo branco?

E se o fumo branco ocultasse um Papa negro?
Eu pelo menos estou a torcer por isso!
Gostava de ver a reacção da facção conservadora e reaccionária da igreja, aquelas Donas de aldeia todas muito devotas, muito pias e muito Cristãs, desse seu Cristinho barbudo e maltrapilho, esquálido e muito branquinho... e que há mais de dois mil anos que anda com uma cruz às costas.
E a esquerda? Como reagiria a esquerda?
Os manos Portas passavam a trocar as suas actividades dominicais: o Paulinho lá iria barafustar e esbracejar contra... o que quer que fosse; já a horda, era vê-los todos devotos, Louçã no fim para não roubar protagonismo, de terço na mão, a contemplar o milagre ao vivo, ou não fosse a igreja o símbolo da revolução de Cristo!
Claro que nada disto aconteceria, para frustração da minha fantasia.
Antes uma coisa bem mais inesperada e nunca antes vista iria ter lugar: todos iriam ser muito hipócritas e achar que tudo era muito natural: Cristo lá continua, branquinho e imóvel para as Donas pias; e a igreja continua a ser o papão destruidor de consciências e do povo para a esquerdarrada radical.
Mas que raio! As fantasias não deviam servir como alternativa à realidade?

Cardeal Dunhill

Alguém escreveu um dia que "um homem forte impõe a sua vontade ao destino" e que "um homem fraco vê o destino impôr-lhe a vontade".
Ora troque-se a palavra "destino" pela palavra "cigarro"...
Tudo é pretexto, o descanso, a pausa, a emoção, a perguiça, o trabalho...
Assim vive uma comunidade suícida espalhada pelo globo, entre a qual infelizmente me incluo- que raio, sabe-me bem um cigarrito!
Somos assim uma espécie de Policarpos sem assento no vaticano, nós somos mais Cardeais Marlboro, Lucky Strike... Eu sou o Cardeal Dunhill...
Ah! e sou "papabili"... (mas só para as meninas)

"Cristo foi coroado com espinhos"...

Acaba de passar na TV o filme “As Sandálias do Pescador” baseado no livro homónimo de Morris West, considerado um romance profético por contar a história da coroação de um Papa de um país comunista de leste (Kiryl I da Ucrânia) 20 anos antes da coroação do Polaco Karol Wojtila.
O recém falecido Papa chegou mesmo a afirmar por mais de uma vez que o Australiano Morris West (que esteve ligado ao Vaticano tendo escrito inúmeros romances acerca da igreja bem como obras teleológicas) era o seu escritor de eleição, sendo este o seu livro preferido.
Apresenta o personagem uma complexa e comovente humanidade e uma inteligência viva, dinâmica e reformista- exteriorizada por episódios tão “sui generis” e cativantes como a passeata anónima do já eleito Papa por Roma- características a que são assemelhadas as qualidades humanas patentes em João Paulo II, como por exemplo a humildade simbólica de beijar os países por que passava.
A todos estes episódios, sem dúvida parecidos, que irmanam realidade e ficção são ainda ajuntados outros pormenores do personagem de West que o verdadeiro Papa parecia também possuir, numa tentativa de autenticar ainda mais o carácter profético do romance: assim ambos foram desportistas antes de papas, ambos introduziram uma nova era de abertura nas relações exteriores do Vaticano e ambos cativavam massas pelas sua imanente personalidade.
Porém uma diferença indisfarçável se impõe claramente como um buzinão incómodo apostado em fazer aterrar muita da fantasia urdida nesta comparação: não querendo exprimir (ainda) juízos de valor ou opiniões acerca da religião ou da igreja, a verdade é que o romance (pelo menos o filme nele baseado) acaba com um anúncio revolucionário e imprevisto do Papa aquando da cerimónia da sua coroação: o património total da igreja, as suas incontáveis riquezas e obras de arte inestimáveis serão vendidas, e o resultado dessa venda será entregue aos pobres de todo mundo para lhes mitigar a fome. A igreja despojar-se-á da sua materialidade e da sua pompa principesca para servir os fiéis que dela mais necessitam. Perante os aplausos do público jura Kyril I que jamais, sob circunstância alguma, renunciará à promessa declarada. “Cristo foi coroado com espinhos” afirma Kyril enquanto retira da cabeça a pesada coroa radiosa.
Esta coroa refulgente – afinal o símbolo do que de facto significa ainda hoje a igreja- ainda nenhum papa realmente pôs de parte. Nem é realista que alguma vez tal venha a ser feito.
Agora não me venham dizer que o livro é profético. A sua Utopia final não é mais que uma bela e agradável ficção. Tudo o resto são “faits divers”.

segunda-feira, abril 18, 2005

Saudação a Orland Gerald

Trata-se de um "poema" meu que já leva algum tempinho e que, vá-se lá saber porquê, decidi partilhar com a blogosfera. Não tenho ilusões acerca das minhas "faculdades" poéticas (que não tenho!). Mas na altura não pensava assim e era com amor fraterno às letras embuído do mais ardente espírito Pessoano que me aventurava nestas quimeras. Para ser sincero ainda o faço às vezes: dá-me gozo. É em homenagem ao benfazejo e ingénuo espírito poético que edito este post.
A circunstância do fedelho resume-se a uma manhã ensonada em que não tive aulas, e que alegremente esbanjei no Chiado.
Resta-me exortar à paciência e boa vontade do leitor: não se deve ser severo para com amadores.

"Manhã em Lisboa

Sento-me numa esplanada
ainda deserta
no coração adormecido da cidade...
Descrevo em palavras de papel
as desertas avenidas habitadas
e os pequenos transeuntes
ainda intorpecidos pelo vento
da manhã.
Parece-me que por momentos
a cidade e esquece de quem é,
e Lisboa matutina sepulta descuidada
a sua identidade.
O ruído está esquecido
entre a brisa visível e as pedras
ainda por calcar

Contudo a cidade é vida
e o seu frémito cresce,
busca o fumo dos cafés,
a sodoma dos pedintes,
e o anelo barroco
das luzes natalícias.
Então, como uma horda de formigas agitadas,
correm as pessoas a preencher os lugares do costume,
mulheres emanando fragâncias,
noite, vícios e ambição...
personagens de odores instalam-se
sobre o calvo sol da manhã

O ruído habitual recomeça a sua senda interminável,
polui por direito o ar da manhã,
Mas que importância isso tem?
O quadro em movimento,
essa obra viva do comum citadino,
configura-se em total plenitude
e no espaço de pouco minutos
a urbe resplandesce em vitalidade.

O cheiro pestilento dos mendigos,
os perfumes banais da burguesia "channel",
o mofo azedo das casas de fado,
em Pessoa...
unificando-se num todo.
A rua é o albergue do povo,
do fumo de escape dos carros,
mais o suor dos quartos fechados,
o néon adormecido das fachadas fulgentes
Esse universo prosaico e tangível...

Lisboa acordou e perfilhou-se para o dia,
a brisa corre agora mais ténue
entre a pessoa e o espaço vazio,
em alinho de parada,
prestam-se as pedras a serem pisadas

A horda é o sangue da cidade
e o seu pulsar é ritmado
guitarras em semi-fusa,
pianos atonais,
o nexo é o padrão morto do pensamento.

Quando a manhã subir
e o sol se tornar claro
a cidade vai cheirar a fogo;
depois acalmará o vento
o lume agreste do perpétuo meio-dia;
mais tarde virá do pulso do astro
reclamar as cores a palidez faminta,
e o manto púrpura deste epílogo
adensar-se-á em negritude e exotismo.
A cidade não guarda tempo para dormir,
sua vitalidade recobra da lua o fôlego,
Constelações... corpos por agitar...
os lobos acorrem à rua com o seu uivo mudo,
com soberba nos corpos e fome no olhar
o ritual reemerge das volúpias da memória
Busca novos contornos,
novos cheiros e novas forças,
até que a lua se ponha.

17/2/02"

Contraditório?

"Nunca discuta, não convença ninguém; as opiniões são como os pregos; quanto mais se martelam mais se enterram." - A. Dumas (Filho).
Está explicada a razão porque não há comments no meu blog.
(A outra razão é porque ninguém o lê... mas isso fica aqui entre nós...)

Portugal é grande!

Basta ir ao Almada Fórum uma vez por outra e dar um saltinho às lojinhas de roupa.
Lá dentro meninas inocentes giram azafamadas como abelhinhas para ver o novo saiote e o novo top decotados. Andam em indumentárias quase tribais, porque aquilo é só natureza e as suas maminhas em clausura têm um jeito irresistível de nos saltar olhos adentro. Mas elas só querem é moda, nem reparam que as maminhas estão prali apertadinhas e tristes! Todos nós sabemos que é sem querer.
E aquelas perninhas gingantes a bambolear em artística e casta – claro, todos o sabemos! – descompostura…Tadinhas!
Nada há de mais cândido do que esta imaculada meiguice!
Como assevera sabiamente João Perrotta: “Portugal é grande!”

A Sabedoria da Sócrates

A sabedoria pode manifestar-se muito prosaicamente.
Sócrates manifesta-a no silêncio, que não o compromete.
Neste aspecto dá a Santana Lopes uma lição que este, temo, nunca assimilará, uma vez que o seu gosto intratável pelas objectivas começa a ser penosamente confragedor (pelo menos para mim que até gosto do homem).
E foi comprometedor. À confiança esbanjada com os jornalistas deve - creio- muito do descalabro eleitoral recente.
Às vezes a palavra é de prata e o silêncio é de ouro.

A surdez de Beethoven

Aparentemente Beethoven volta a estar na moda. Na verdade Beethoven parece nunca sair de moda, o mito do génio surdo e misantropo instalou-se defenitivamente no ideário ocidental. Ainda bem.
Não me refiro à suposta “moda Beethoven” no sentido "intelectual de café" (de esquerda) que gosta do ar destrambelhadamente absorto e revoltadamente pueril do Mestre- ainda que desse desmazelo aparente com a materialidade da vida resulte uma parte inegável do seu carisma. Ser grande implica também as presunções levianas que os pequenos tecem à sombra dessa grandeza.
Mas Beethoven é e será sempre um ícone. É um facto. É uma espécie de Einstein na música. Porquê?
Beethoven é antes e acima de tudo intemporal, imortal e portanto não pode passar de moda. Pelo menos a sua música é-o. Mas o público parece dedicar também especial atenção ao seu carácter, ao seu inconformismo, à sua revolta, aquele "não encaixar bem" nas convenções, aquela animalidade latente, perigosa e cómica. Beethoven é uma parte de nós que guarda ainda a memória da criança injustiçada pelo castigo imerecido, uma zona de sentimentos fortes e de paroxismos de sensibilidade. A isto alia uma faculdade de expressão de recursos ilimitados. A sua música é o reflexo mais impressionantemente conciso do que era o seu carácter: elevado, digno, de uma hombridade inusitada, um sofredor hipersensível com a leviandade aristocrática de salão e da burguesia mundana, despreocupada e inútil. Era um escravo da sua integridade, um convicto e ingénuo repúblicano e um idealista confuso mas convertido pelas máximas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a que jura reverência no mais fundo da sua alma.
A sua música pode ser leve ou densa, suave ou possante, descomprometida ou submersa em paixões, mas jamais é leviana: ela não é o que somos, é um Ideal, uma utopia sentimental de perfeição e elevação que concretizada nas suas partituras violentamente rabiscadas- é aquilo que deveríamos ser, ou que quereríamos ser, mas para tanto nos falta em vontade o que nos sobra em "humanidade" (que compreende o fútil, o supérfluo e o natural saturamento apanágio da preguiça).
A perfeição de Beethoven não é a perfeição fácil e divina de Mozart, é uma perfeição árdua, carregada de esforço e agruras (a 5º sinfonia ocupou-lhe 10 anos e 40 cadernos enquanto que Mozart escreveu aberturas numa madrugada!)
Os obstáculos são apenas aquilo que temos de ultrapassar. Sem rochedos as vagas subiriam tão alto?
E Beethoven sobe até ao cume.
Ouvindo a marcha fúnebre dessa obra-prima das Eras, a “Heróica”, apercebe-se que a mais genuína e trágica surdez de Beethoven era uma surdez antropológica e metafísica, mais importante e impressionante que a própria surdez física.
Ele começa do zero, ainda que conheça bem a obra dos mestres do passado como Bach, Haendel, Haydn e Mozart; porém destrói os alicerces melódicos, harmónicos e formais das suas conquistas e amplia-os, insuflando neles uma alma, calor e expressividade inauditas. As fundações vão abaixo, as cadências mudam, a melodia expande-se em possibilidades inimagináveis até então, a gama de sentimentos musicais possíveis de exprimir é completa e a sua obra diz tudo o que há para ser dito.
É este edificar renovado, esta predisposição mental para a criação pura, liberta de influências que não as da técnica, que abrem horizontes, iluminam caminhos, trilhando estoicamente no desconhecido… Beethoven é um aventureiro das quimeras impossíveis. Esta imperatividade intelectual para a originalidade e para o futuro fazem deste homem a encarnação da Força, da Inteligência, e Criação e convertem a sua obra em Poder, Inspiração e Visão.
A verdadeira surdez de Beethoven não é a surdez celebérrima que o público descobre na estreia da impressionante Sinfonia Coral em que as palmas comovidas de um auditório em pé lhe passam despercebidas por estar de frente para o palco. A sua surdez é a surdez umbiguista do génio revolto que em si apenas busca o que sabe que só ele lhe pode dar.
Quem é afinal o surdo?
A surdez dos homens para com Beethoven é a porta da sua alma fechada à Eternidade.
A surdez de Beethoven para com os homens é o ouvido aberto da sua alma aos Deuses.