quinta-feira, dezembro 18, 2003

Nova sugestão:

Para quem vitupera a afirmação de que há guerras necessárias, o que equivale a defender a paz a qualquer custo, ver "flor de obsessão" (o nome do artigo é "Afeganistão", mas recomendam-se também os restantes)

quarta-feira, dezembro 17, 2003

Ódio e desprezo: a velha lenga-lenga dita por quem sabe:

Mais uma vez recorro a Schopenhauer- e a minha lista de citações vai-se alargando e agravando, visto ser Abdul-Yasser quem assina todos os artigos e frases deste blog, mesmo quando são puras citações (todas elas, entenda-se, até agora e sempre inequivocamente identificadas). Contudo, já outros pensaram, em alguns aspectos, o mesmo que muitos de nós, com a diferença de que o expressaram melhor. O que se segue é a dissecação, o esmiuçar preciso e claro de uma pequena noção de comportamentos opostos que perfilho desde há muito e que com agrado li em Schopenhauer. Muitos de nós já o teremos pensado (arriscar-me-ia a dizer que quase todos concordam com o que vai ser dito); nesse caso, aqui se encontra uma fonte de argumentação límpida e exacta à qual poderemos sempre recorrer quando a ocasião surja (nem sempre o que sentimos é assim tão fácil de apurar). Para os que discordam, aqui se encontra também o melhor caminho para se refutar esta ideia, por ser também aquele em que ela se encontra melhor exposta ( dentro dos textos que conheço), pois penso que para se contestar uma teoria se deve objectar a melhor explanação dela feita, de forma a averiguar honestamente a validade e a veracidade da nossa.
Acerca do ódio e do desprezo:
" O ódio está ligado ao coração, o desprezo à cabeça.
O ódio e o desprezo são, decididamente, antagonísticos entre si e excluem-se mutuamente. Na verdade, uma grande dose de ódio não tem por origem senão um respeito forçado pelas qualidades superiores de outrém; pelo contrário, se pensarmos em odiar todos os vis desgraçados com que deparamos, teríamos um trabalho desnecessário: é muito mais fácil desprezá-los a todos. O verdadeiro desprezo genuíno, que é o reverso do verdadeiro orgulho genuíno, mantém-se oculto, em segredo, e não permite que ninguém suspeite da sua existência; porque, se permitirmos que uma pessoa que desprezamos dê por isso, revelamos dessa forma um certo respeito por ela, na medida em que queremos que ela saiba o pouco valor que lhe damos- o que revela não deprezo, mas ódio, que exclui o desprezo e só o afecta. O desprezo genuíno, por outro lado, é a convicção pura da insignificância de outrém; permite a indulgência e a tolerância, na medida em que, para nossa própria segurança, nos abstemos de provocar a pessoa desprezada, pois toda a gente é capaz de causar sofrimento. Se, no entanto, esse puro, frio e sincero desprezo alguma vez se revelar, será retribuído com o ódio mais sanguinário, porque não está nas faculdades da pessoa desprezada retribuí-lo com desprezo."
Arthur Schopenhauer, "Aforismos", livros de bolso Europa- América.

*

A publicação da segunda parte do artigo "contra a retórica" determina-se adiada para o fim-de-semana, altura em que, por haver mais tempo e maior serenidade para a continuação da minha exposição, a terminarei de forma mais natural e fluida (apesar de tudo isto não é um jornal e não tenho "death lines" a respeitar). Não quero também, por outro lado, que me acusem de ter um blog maçudo e indigesto. Segue-se um interstício primaveril para não dar razão a quaisquer eventuais acusadores...

Contra a retórica- I

"Isso não é nada... é retórica." Não é preciso conhecer-me bem para se ouvir esta expressão saída da minha boca um tanto ou quanto repetidamente, provocando porventura algum tédio àqueles que comigo privam mais intimamente...
Mas se ouso apontar um dedo acusador publicamente a alguém que incorra neste mal pernicioso é porque, em primeiro lugar, estou entre amigos (pode haver excepções como veremos posteriormente), e depois porque, por cada vez que sequestro ou assassino o argumento de alguém com esta acusação, tal facto deve-se ao constrangimento insustentável que sinto em manter meu silêncio altivamente desdenhoso, continuamente em ebulição por todas as outras (tantas) vezes em que me calo. Tenho quase a impressão que por cada vez que digo isto, me terei feito mudo sobre o assunto, em média, perto de dez vezes. Com efeito, graça o hábito de por aí­ andarem a ser vilipendiadas as regras do raciocínio e da lógica mais elementares através do uso desmedido, deturpado e criminoso que deste conceito tem vindo a ser feito, o qual, na sua acepção inicial surge como uma criação de grandeza, de mérito para além de louvável. A retórica nasce como um adorno, como um ornamento a um discurso, com vista a torná-lo apelativo e persuasivo. Todos sabemos por alto a história da retórica e como dela “fugiu” horrorizadamente, combatendo-a como à urticária um iracundo e desesperado Sócrates confrontado já, porém, com o seu desvio, isto é, o invólucro da forma, da exterioridade e da aparência despida de essência, de conteúdo nulo que não respeita a verdade lógica e ignora qualquer tipo de validade material. Não quero aqui fazer uma perspectiva histórica da retórica, nem tão pouco mencionar as várias escolas que a analisaram e dissecaram ao longo dos séculos, saltitando das mais insanas teorizações às mais absurdas elucubrações: já o fizeram pessoas bem mais capazes (leia-se Paul Verlaine) e na verdade, com um grau de conhecimento e paciência infinitamente superiores aos meus...
Em todo o caso vou afirmando que a essência da retórica foi outrora, originalmente, indissociável do conteúdo, ou seja, a forma deveria complementar a matéria, a aparência deveria adornar, chamar a si o público (naturalmente falamos de oradores), mas tendo sempre por objecto o que estava sendo dito de verdadeiro, a mensagem que brotava das palavras. O como se dizia um discurso era uma fachada que deveria ser tanto mais imperiosa e rutilante quanto mais bela e densa fosse a mansão que esta cercava.
Poderia continuar desenvolvendo outra vertente gravosa consequente da dissociação actual e corrente destas duas naturezas de um discurso: é que muito do discurso que interessa é-nos, por raciocínio inversamente análogo, apresentado de forma embrutecida, despudorada e inestética. Mas isso é outra história, a metade menos grave da questão.
O problema essencial e que me faz parecer chato dada a sua preocupante perpetração e a minha manifesta incapacidade de encaixe sucessivo, reside na mera constatação de que as pessoas que gostam de dizer frases loquazes, belas e eloquentes, dizem na maioria dos casos, enormes barbaridades, mastodônticos hinos de grotesco aparato e ignominiosa obtusidade. Pensa-se que falando bonito e não dizendo nada, se fala bem! Que uma ideia é tanto mais profunda quanto mais sonante for a frase que a expressa, ainda que seja absurda e que tente pretensiosamente, levianamente e impunemente contradizer conceitos burilados com labor, reflexão, angústia mesmo- o que necessariamente toma tempo- com comentários enviesados e dum pretenso laconismo “holywoodesco”, daqueles em que um top-model em estreia mundial resume em duas tiradas certeiras sistemas filosóficos inteiros, contradições ou problemas insolúveis ou de discussão alargada desde que a humanidade se conhece...Tenho também tenções de explicar o porquê deste comportamento costumeiro- trata-se de facto de um costume na acepção jurídica da palavra: uma prática reiterada desde há longa data e com convicção de obrigatoriedade.
Na verdade, o que aqui está em causa que importa realmente, o que é de facto grave em tudo isto e que é o porquê de eu estar sobre isto a discorrer tão afincadamente e que constitui o âmago oculto destes comportamentos, o cerne da questão, está no pensamento, na forma de agir e de encarar a vida do mundo moderno genericamente falando, o que inclui um desprezo titânico e, o que é pior, inconsciente (como tal, soberbamente entristecedor) pelo espírito, pela honestidade intelectual, pela verdade do conhecimento, pela reflexão interior e pela valor analítico da formulação de juízos próprios, pela colocação de dúvidas, pela procura de repostas, pela pesquisa daquilo que perdura, pelo que é belo e sereno. Já Goethe o dizia: “ Aquilo que é efémero, é obra do momento, o que é belo todavia, perdura pela eternidade.” Para muitos esta frase é arcaica, motivo de troça e sem valor algum.
Na base ou como consequência de tudo isto (não sou capaz de discorrer causa e efeito) está a necessidade crescente de se ser ouvido, bem ou mal e independentemente do mérito ou capacidades; de se fazer notar, de se colocar artificialmente num pedestal momentâneo e vão de uma fama artificial e mesquinha- a cultura do Big Brother e a idolatria pop estão de tal forma enraizadas no nosso subconsciente colectivo e desde há tantos anos que o próprio advento destes concursos surge como consequência natural de uma sociedade em que as pessoas se representam literalmente a cada momento, criando o mais despudoradamente possível figuras e imagens fantasiosas de si próprias desde o momento em que se vêem ao espelho de manhã ao momento em que se escondem debaixo dos lençóis de noite, amedrontadas.
A sociedade insegura e medíocre em que vivemos entristece-me e faz de mim chato. Muitos dos resistentes críticos são na verdade aqueles que mais se importam e, apesar de o não parecer às vezes, dado o tom corrosivo e amargo mesmo dos seus petulantes laconismos em determinadas situações, aqueles que de facto encontraram a felicidade. O que as pessoas parecem esquecer ou ignorar é que, apesar de tudo, não se critica aquilo a que se é indiferente.

sábado, dezembro 13, 2003

Breves ( duas curtas reflexões não-originais)

Perguntei há dias a um amigo meu "como iam as coisas de mulheres", ao que este me respondeu surpreendentemente que já não se interessava por mulheres... Naturalmente preocupado, continuei intrepelando-o se a partir de agora gostava de homens...
Não, é claro... mas explicou-me o porquê da sua afirmação.
- As mulheres e a inteligência não jogam, não se coadunam. Há mulheres e há inteligência, as duas juntas, não há. A nossa inclinação por mulheres parte meramente da satisfação de um desejo animal, de uma inclinação natural e física, sendo que, portanto, não há afinidades espirituais possíveis entre homens e mulheres. Desta forma, a mulher reduz-se a uma prostituta. O fim último da mulher é a prostituição. É para isso que nascem. Quem quer estar com mulheres, que vá às putas!
Não resisti a contar esta história a uma amiga. Com aquilo que ouvi poderia ter ganho certo dinheiro se me tivesse dado ao trabalho de apostar antecipadamente sobre as suas palavras. Foi líquido:
- Esse teu amigo deve ter algum problema com mulheres... Provavelmente foi um desgosto amoroso muito forte que o marcou e o instigou a guardar rancor às mulheres. É algo que acontece amiúde...
Achei curioso este diálogo surdo entre estas duas personagens que manterei anónimas. Quanto às opiniões de cada um, prefiro abster-me de as comentar.

" Certo dia, quando recolhia espécimes por baixo de um carvalho, encontrei, entre as outras plantas e ervas daninhas, e do mesmo tamanho que elas, uma planta de cor escura com folhas contraídas e um caule direito e rígido. Quando lhe ia tocar, disse-me com voz firme:
- Deixa-me em paz, não sou uma erva para o teu herbário, como as outras a quem a natureza deu apenas um ano de vida. A minha vida mede-se em séculos. Sou um pequeno carvalho."
Assim é aquele cuja influência se fará sentir ao longo dos séculos, quando criança, quando jovem, muitas vezes já quando homem, uma criatura viva aparentemente igual às restantes e aparentemente tão insignificante como elas. Mas basta que lhe dêem tempo e, com o tempo, pessoas que saibam reconhecê-lo. Não morrerá como os restantes."
Arthur Schopenhauer, "Aforismos", livros de bolso Europa- América.

quarta-feira, dezembro 10, 2003

Sugestões e conselhos

-O artigo de Vasco Graça Moura no Dn de hoje sobre a reforma da disciplina de Português para o básico e secundário.
- O artigo de "flor de obsessão" acerca da prodigiosa campanha para a associação de estudantes de uma faculdade pública ( "Uma Campanha Alegre").
-Disco de Lakatos "As Times Goes By" com membros da Orquestra Cigana de Budapeste ( a mais espectacular do mundo). Imprescindível.

The Doors

Prometi logo após a saída do concerto dos Doors ( dia 6 no Pavilhão Atlântico) a mim mesmo e aqueles que comigo assistiram ao regresso parcial da lendária banda, que iria escrever sobre ele no meu blog ( se bem me lembro, à data era apenas "projecto de blog"), para mais tarde recordar...
Num breve comentário limitar-me-ei a dizer que foi um dos grandes concertos a que assisti até hoje e que Ian Absbury ( acho que é assim que se escreve) quase fez esquecer o mítico "rei lagarto". Manzareck e Kieger estiveram em grande, simultaneamente sóbrios e destacados, acrescentando música à música ( as improvisações foram de alto gabrito). Não quero acrescentar muito mais, não só porque mesmo acrescentando "pouco mais" soaria às redundâncias do costume "espectacular", "lindo", "indescritível", etc...; mas também porque, de facto, não se pode narrar um concerto, um estado de espírito e uma inquietação dos sentidos como a que os "Doors" provocam, mesmo após tantos anos de distância, recorrendo meramente a palavras. Na verdade, só quem lá esteve pode guardar a força de uma música louca, desregrada, conscientemente provocatória e sobretudo trágica, oscilando numa osmose entre momentos de irrepetível tristeza ( os momentos de ressaca...) e momentos fulgurantes, quase que orgiásticos de louvor temerário e arrojado à vida, às mulheres, ao vinho... ( as "mocas"). A indissociabilidade do sucesso da banda ao sucesso da figura poderosa do seu vocalista ( ex-vocalista...) ,terminando com o infortúnio súbito de Paris ( que apesar de tudo se vinha adivinhando)- tornam, confesso, mais atraente e apelativa essa "reencarnação". Estou absolutamente convencido de que a intemporalidade dos Doors parte primeiramente do seu contexto temporal, uma época claramente definida historicamente, de cariz contestatário, leviano, libertino e selvagem; portanto, único, remoto e, na verdade, irrepetível. Perdura um forte perfume a nostalgia mais as costumeiras lamúrias do "morreu tão novo!", "tinha de ser", "estava destinado", etc... Também dos "podia ser", "o que aconteceria se" e dos "até onde chegariam" se faz a história. Neste caso, uma história trágica, com sabor a eternidade...

Uma pequena divagação acerca da ignorância...

Desabafando subitamente a meio de uma aula a semana passada, declarou um dos meus professores da faculdade que se sentia tremendamente ignorante... É a pessoa em causa professor na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, na cadeira de Ciência Politica e Direito Constitucional (ando efectivamente no primeiro ano de direito- curso fatal de Eça, Schumamn, Tchaikovsky, Raskolnikov e tantas outras ilustres personagens...) e baseava a sua suspeitosa afirmação, feita em jeito de confidência (olhos fixos no nada, um profundo alheamento momentâneo...) no facto de considerar que, para ministrar devidamente a cadeira, deveria, como também o deveriam os seus colegas, dominar perfeitamente ( e, no mínimo- segundo ele) o latim, o árabe e o grego; coisa que não acontece, o mesmo se passando com os seus colegas docentes. Encontrei nesta curiosa declaração certa afinidade análoga a um sentimento vago e incomodativo que me persegue esporadicamente, ainda que referente a assuntos diversos. De facto, parando cinco minutos em frente da estante de quase todas as livrarias (ia escrevendo "todas"- mas aqui refreei o meu ímpeto frívolo porquanto além de não haver muitas livrarias de qualidade que sejam exclusivamente livrarias- um mal menor-, muitas há que, sendo-o exclusivamente, o não são devidamente...) sou tomado por um sentimento esmagador de pequenez acrescido da claustrofóbica sensação de que o tempo me foge e provavelmente continuará a fugir-me ao longo de muitos e muitos anos. Sei quem foram Faulkner, Proust, Joyce, Rimbaud, Baudelaire, Schopenhauer, Steinbeck, Hemingway, Gogol, Duras, Simenon, e tantos, tantos outros... conheço inclusivamente os títulos e os assuntos versados nas suas obras de maior renome, bem como muitos episódios supérfluos acerca das suas biografias, pilhérias ao mesmo tempo insípidas e rocambolescas, na maior parte dos casos sem interesse algum, dignas de conversa de cafés entre pseudo-intelectuais... contudo, paro e pergunto-me: o que conheço eu na verdade acerca destas homens? Como posso eu aprender com eles e avaliar o que fizeram? Como posso eu "cultivar o meu jardim" ( a expressão é de Voltaire), ajudado por foices alheias, pretendendo torná-las todavia como ferramentas minhas, se me falta ler tanto, conhecer e aprender tanto, saber tanto...? Volto a mim em seguida e concluo que o “saber” não é um ofício, devendo ser outrossim desfrutado com prazer, – naturalmente inacessível aos incautos e aqueles de espírito impaciente-, de forma tenra e paulatina, devendo saborear-se como se saboreia um gelado frio com creme de morango por cima, que, devorado com demasiada cupidez, transforma o gelo em fogo que queima com o seu travo, tornando amargo o que era doce.
Ocorre-me ainda um outro pensamento: ocorre-me que talvez aqueles homens, bem como muitos outros que porventura não chegaram a ser tão grandes (basta ser o maior que se pode ser) também terão eventualmente tido este tipo de dilemas e anseios, uma espécie de conflito insolúvel entre a sede de conhecimento e a sua comercialização, a sua difusão promíscua no interior do espírito (quando o indivíduo se torna um depositário inanimado de livros e nomes, à semelhança de uma estante velha e bafienta, a qual nem para adorno se despe da sua fealdade), dualidade essa dividida por uma linha muito ténue e, em muitos casos, invisível. Penso por último que este tipo de dilemas não se encontram latentes nas cabeças furtivas que se apinham em frente aos televisores vituperando o árbitro porque a bola é que foi à mão do jogador e não o inverso (atenção que eu também gosto de futebol- o bom apreciador não se ofenderá comigo porque não é apanágio do esteta do desporto- o bom apreciador- este tipo de comportamento de fundamentalista da bola), pelo que, ainda que de uma forma um tanto baixa, tiro desta especulação uma satisfação mesquinha, acordo da minha vigília momentânea, abandono a estante aos restantes curiosos e sigo pela baixa fora ( imagino-me na fnac...), possivelmente com um novo livro de baixo do braço. Também o meu professor estacou como que dando acordo de si uns dois segundos e seguiu dissertando sobre Aristóteles, até a hora marcar a altura de arrumar as malas, sair e, para muitos, esquecer...

segunda-feira, dezembro 08, 2003

Introdução- porquê Abraxas? e o que é isto de hiperbóreo?

Sendo avesso a estas tecnologias e internets por natureza (confesso que, frequentemente, o faço erradamente- mas como pode um escorpião trair a sua natureza?*), é contudo com grande regozijo que nela vislumbro finalmente alguma utilidade. De facto, esta coisa dos blogs, vem responder de forma inusitada a inúmeros projectos e anseios que, por falta de meios físicos concretos para a sua realização, se limitavam a pulular fervilhante e constrangidamente na minha cabeça. Agora que, como disse, vejo inesperadamente um meio que permite a concretização de muitas das minhas ideias, espero corresponder na utilização e exploração das possibilidades deste instrumento e não me desleixar na sua efectivação, uma vez que é este um dos males endémicos dos portugueses- queixarem-se da falta de meios até à data em que se quiexam dos meios que têm...
Abraxas**: o Deus hebraico do bem e do mal, da luz e da sombra, da claridade virginal e do manto diáfano do pecado...ou não será o homem fruto da constante batalha destas duas naturezas opostas? aqui se tratam destes assuntos, sem complexos ou receios, uma vez que, olhando para a realidade, vejo lixo, mas também asseio; vejo egoísmo, mas também abnegação; vejo ódio, mas também amizade; vejo fracos e fraquezas, mas também vontade, realização e progresso- embora, neste país, o progresso pareça andar escondido...
Por isso o nome do blog é Abraxas e o caminho para cá chegar é "Hiperbóreo"***. Lembrar-se-á certamente o leitor mais astuto da presenca deste termo numa das suas leituras de rotina, ainda que provavelmente o faça de forma vaga e baça... deixe-me refrescar-lhe a memória:
" Olhemo-nos de frente. Somos Hiperbóreos, e sabemos bem como vivemos distantes. Nem por terra nem por mar encontrarás o caminho que conduz aos Hiperbóreos(...)". São estas as primeiras linhas do primeiro capí­tulo do Anticristo (precidido de um prólogo) de F. Nietzsche. O caminho para os Hiperbóreos é este.
Acrescentarei por último que, nem sempre seremos fieís aos nossos amigos setentrionais, uma vez que versaremos não só sobre assuntos mais sérios- literatura, música, arte, filosofia, política, etc... (ainda que nem sempre com o rigor que apenas o conhecimento pode estabelecer- quem faz o que pode, a mais não é obrigado...), mas tambem sobre quaisquer tipo de pensamentos e assuntos que nos prespassem o espírito, por muito insignificantes que, por vezes, possam parecer- pensamentos, reflexões, narração de episódios curiosos, sinuosos, ou simplesmente banais que occoram no dia-a-dia, poemas, mas que nos prendam pela sua originalidade ou súbita comoção nos profundos remígios de que é capaz a mente humana quando tenta captar, absorver ou expressar o inefável...
Resta-me desejar-vos que me acompanhem nesta viagem e que não me levem demasiado a sério- eu também o não faço.

*- "A rã o escorpião:
A história seguinte é talvez a mais famosa que a tradição africana nos legou. Recorde-se que Orson Welles a contou no seu filme " O Senhor Arkadin".
Um escorpião, que desejava atravessar um rio, dirigui-se a uma rã:
-Leva-me às tuas costas!
-Queres que te leve às minhas costas!- respondeu a rã- Nem penses! Se te levar às minhas costas, tu vais picar-me e matas-me.
-Não sejas estúpida- diz-lhe então o escorpião.- Não vês que, se te picar, tu vais ao fundo e eu, que não sei nadar, afogo-me?
Os dois animais estiveram assim a discutir durante algum tempo e o escorpião mostrou-se tao persuasivo que a rã aceitou levá-lo a atravessar o rio. Carregou-o no seu dorso escorregadio, ele segurou-se e começaram a travessia.
Chegados ao meio do grande rio, onde se cavam os remoinhos, de súbito, o escorpião picou a rã. Esta sentiu o veneno fatal espalhar-se pelo seu corpo e, ao afundar-se, arrastando consigo o escorpião, disse-lhe:
- Vês? Bem te disse! Olha o que fizeste!
- Que queres?- respondeu o escorpião antes de desaparecer nas águas glaucas.- É a minha natureza."
Jean-Claude Carrière, "Tertúlia de Mentirosos- Contos Filosóficos do Mundo Inteiro", Edições Teorema.
**- aconselho a este proposito a leitura de "Demain" de Herman Hesse.
***- "Povo sagrado da Mitologia Grega que habita o extremo Norte do Mundo, "para lá das costas do Vento Norte", segundo o seu nome. Porque a sua terra era um paraiso impossível de se alçancar sem a ajuda dos Deuses, só foram visitados por raros estrangeiros e por grandes heróis, que receberam maravilhosamente. Não conheciam a doenca e viviam permanentemente em festa."
-Nietzsche, "O Anticristo", Colecção Filosofia e Ensaios, Guimarães Editora.

domingo, dezembro 07, 2003

À guiza de introdução:

"Whether we write or speak or are but seen
We are ever unappearent. What we are
Connot be transfused into word or mean.
our soul from us is infinitely far.
However much we give our thoughts the will
To make our soul with arts of self-show stored,
Our hearts are incommunicable still.
In what we show ourselves we are ignored.
The abyss from soul to soul cannot be bridged
By any skill of thought or trick for seeing.
Unto our very selves we are abridged
When would utter to our thought or being.
We our dreams of ourselves, souls by gleams,
And each to each other dreams of others' dreams."

English Poems, 35 Sonnets I- Fernando Pessoa