sexta-feira, março 04, 2005

Laxismo Premiado

O texto que se segue é da autoria do meu pai, que andando de há dois anos a esta parte visivelmente agastado e carregando no semblante uma patente angústia e uma visível depressão, me rogou que arranjasse forma de dar visibilidade a essa sua amofinação, ao tornar público o seu manuscrito em que acusa temerariamente o laxismo diligente em que se quedou o Tribunal onde labuta.
Daí não ter outra alternativa senão a de publicar o seu texto neste blog, sob pena de privação por tempo indeterminado da minha mesada. É nestes termos que se publica de livre e espontânea vontade o imediato escrito:

"No Tribunal da Relação de Lisboa, parece existir uma certa predilecção pelo ditado popular «Em casa de ferreiro, espeto de pau».
Na verdade, num local emblemático, onde elementares princípios de Justiça deviam ter a virtualidade de uma aplicação privilegiada, são ignominiosamente escorraçados por incompreensíveis e não menos perversos provimentos de “conveniência de gestão”, traduzidos numa formula mágica de fazer com que um magistrado com elevado número de processos em atraso, passe, num instante, a despojar-se deles e, em apoteose e requinte, seja panteonizado, passando ele próprio a presidir aos julgamentos desses mesmos processos, mas cujo acórdão vai ser redigido por um outro colega.
Vem isto a propósito do critério que tem vindo a ser seguido para a nomeação (pelo Presidente do Tribunal), do presidente da 9ª Secção Criminal do mesmo Tribunal.
Em 2002/2003, um contumaz foi nomeado presidente, após cerca de 30 anos de ausência em África (Moçambique), ao abrigo da lei de cooperação.
Sem qualquer classificação de serviço, o forasteiro retorna a Portugal onde, apenas por força da antiguidade (!!!), é colocado neste Tribunal, como presidente da 9ª Secção sem nunca ter relatado acórdãos num tribunal Superior – “Veni, vidi, vinci”.
É certo que o artº 46º, nº1 da Lei 3/99, de 13/01, aplicável à Relação ex vi do artº 61º do mesmo diploma, prevê que cada secção é presidida pelo mais antigo na categoria dos seus juízes.
Porém, não é menos certo que este critério – antiguidade – tem subjacente o facto de, por força do exercício efectivo de funções durante maior período de tempo, conferir ao magistrado (mais antigo) uma “mais valia” relativamente aos demais, traduzido num maior conhecimento efectivo das questões postas em recurso e, sobretudo, do modo como as resolver, tornando-se, assim, uma referência para os colegas mais novos, merecedora do reconhecimento e respeito pelo trabalho que desenvolveu ao longo dos anos.
Mas, quando esse critério de antiguidade, em nada é proporcional ao trabalho desenvolvido, quid juris?
É evidente, que por critérios de competência, mérito e eficácia nas decisões, para já não falar no respeito e consideração necessáriamente devidos aos restantes magistrados que cumprem com zelo e atempadamente as suas funções, o simples critério de antiguidade não pode prevalecer. Pesa de menos num dos pratos da balança quando em confronto com os demais.
Franquear a panteonização, como presidente de uma Secção, a um magistrado acidental, para “honrar” – apenas por força da antiguidade – a sua turva solidez jurídica, não pode deixar de suscitar a verrina jocosa de quem sente a levedar entre as becas a inquietação pelo mérito do colonial forasteiro.


Todavia, uma vez mais, este critério de antiguidade prevaleceu na nomeação do novo presidente da 9ª Secção, já que o forasteiro foi colocado no tribunal da Relação de Guimarães, por força do movimento judicial (retornando, porém, indignado a África, queixando-se da sua sorte, já que, depois de entronizado com pompa e pungente circunstância como Presidente da Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, por convite expresso e esforçada pressão do Presidente do Tribunal – segundo crónica do mesmo aos seus próceres ultramarinos – acabou por ser ver retirado do augusto lugar e lançado à vala comum no Tribunal da Relação de Guimarães).
Com efeito, o magistrado mais antigo na 9ª Secção é um dos que tem, actualmente, maior número de processos atrasados, alguns com ...3 anos!!!
Tem a correr, por força disso, processos de inquérito no Conselho Superior da Magistratura.
Pois, bem, a tomada de posse como presidente da secção, será como que uma dádiva da fada madrinha. Como de um passo de magia se tratasse, passa num instante, a ser o magistrado com todos os processos em dia, e sem qualquer outro na lista de processos pendentes. É que, passando a presidente da secção, larga mão de todos os processos que tinha a seu cargo (cerca de 90), que serão redistribuídos por colegas “mais novos” e, mais grave ainda, deixa de ter processos a seu cargo, ou seja, não lhe é distribuído nenhum processo. Privilégio que nenhum mortal entende e nem mesmo é concedido ao Presidente do Tribunal, que tem a seu cargo determinada espécie de processos (reclamações, sobretudo).
Isto ofende a dignidade moral e profissional dos restantes magistrados mas pior ainda, as legítimas expectativas do cidadão que, tendo contribuído com uma parte dos impostos que paga, para a formação de magistrados, estes deixem pura e simplesmente de resolver os conflitos que esse mesmo cidadão quer ver resolvidos, precisamente quando atingem, ou deviam atingir, destacado grau de formação para a boa administração da justiça.
Até quando irá manter o Tribunal da Relação de Lisboa o primado do laxismo na progressão da carreira dos seus magistrados traduzido numa espécie de proteccionismo injustificado a quem, ao invés de decidir, permanece sentado diante da sua balança, a ver os pratos oscilar?


Lisboa, 10 de Julho de 2003



Cid Geraldo."


Hoje mais do que nunca este escrito mantêm plena actualidade. Ontem, dia 3 de Março de 2005 tivêmos a "boa-nova" de que os processos que haviam sido distribuídos ao presidente da 9º Secção irão ser redistibuídos pelos restantes colegas, uma vez que o Presidente da Secção foi contemplado com a severa punição de permanecer em férias domiciliárias durante cinco meses...
Alea jacta est!

“Uma má consciência pode tornar a vida interessante."
(Soren Kierkegaard).


Caparica, 04/03/2005