quarta-feira, setembro 15, 2004

Esperançada penúria

"Não fracassaei: descobri que 1.200 materias não servem." - Thomas Edisson.
Não fracassei: descobri que para 1.200 materiais eu não sirvo. Não me estranhem: sou benfiquista.

Crónica de um Verão anunciado

"O gosto de vaguear de noite,a horas mortas, era agora o mais querido dos meus prazeres melancólicos." Assim entendeu José Régio (novamente ele) encetar-se na escrita do seu já citado romance "Jogo da Cabra Cega", obra que de forma sorna e embevecido de um anquilosado conformismo, preguiçosamente desfolheio. Questiono-me em alturas como esta acerca das vantagens adventes do meu ainda parco, mas esforçado, grau de literacia. É que, não sendo eu grande adepto de arrojados pan-psiquismo poéticos, teorias de transmigação de carácteres ou de perturbadoras e fantasmagóricas crenças de medianismo espiritual, sinto-me involuntariamente comovido com esta minha fraterna empatia partilhada com o insigne literato: como ele, tenho sido um incurável e nostálgico nóctivago.
Mas a pólvora não anda muito abaixo do solo: nesta época estival, ainda que em melancólico término, o gosto de vaguear de noite é a única forma de combater o plangente anelo de quem anda - em quadra de fogosos pagodes, laudatórios a Baco, tenros afagos, e cálidas volúpias- tristonhamente enjeitado e desquitado de tão humanos deleites.
Até aqui nada de anormal.
Porque razão então me lamento?
A verdade é que não me lamento, não é essa a causa da minha desalentada prostração: sempre descobri que posso vaguear de noite e retirar daí algum júbilo, sem que porém de tal consolo advenha nenhuma espécie de literária desforra que suplante as palavras certeiras e eloquentes do eremítico e insondável escritor. Não as conhecesse de antemão e talvez eu as podesse ter (re)criado com aquela ignota sensação de ter em mim descoberto uma reconfortante originalidade.
Quimérico e depauperado desforço: como sempre, para o próximo Verão há mais!

segunda-feira, setembro 13, 2004

Insónia

Razões possíveis:
- Pensamentos passionais;
- Pensamentos intelectuais;
- Fome.
Que tal as três?

Um inclemente apotegma

Quem quer os comoda tem que querer os incomoda.

Watergate enfabulado

No filme “Nixon”, um prostrado Anthony Hopkins (Richard Nixon) desoladamente comenta, mortificando-se perante um retrato de Kennedy: “Quando te olham, as pessoas vêm o que querem ser; quando me olham, vêm o que são”. Desconfiando porém dos meandros analiticamente menos saudáveis (por osbcuros e de difícil, senão impossível aferição) de elocubrações psicológicas deste teor, arriscar-me-ia a aventar a verosimilidade de uma afirmação como esta, transpondo-a porém para uma domínio mais geral e englobante (deixo aos historiadores e psicólogos o esboroar destes -possíveis- complexos presidenciais).
A verdade porém é que Nixon não terá sido o presidente que os Norte-Americanos mais estimaram, como também não é menos verdade este ser republicano e Kennedy um democrata. Será apenas mera casualidade o facto de no coração do povo a esquerda ter apanágio em detrimento de um acerbo desprezo, de um prosaico fel de que a direita é, de forma tendencial, alegre e levianamente exprobada?
De semelhantes certames se distinguem as consciências políticas individuais, bem mais do que dos tratados, manifestos ou doutrinas que astuciosamente se intentam efectivar: da clara compreensão de prosaicas verdades se formam as verdadeiras convicções.
Assim uma irresolúvel, inconciliável e conflituante perspectiva aparta e apartará sempre uma consciência política de esquerda do pensamento recto, probo e capaz da razão de direita: a consciência da imperfeição do mundo, do homem e, partindo-se destes pressupostos, a assumpção de soluções possíveis, críveis e, quase sempre, imperfeitamente completas. Essa imperfeição é, porém, já um dado adquirido a que não se pretende, por honesta pragmaticidade, escapar. A direita vê o homem. A esquerda a doutrina, esquecendo-se porém que a doutrina esmaga o homem, submerge a sua espontaneidade, a sua imprevisibilidade, o seu carácter a um silogismo conceptual de “verdades” adquiridas, mas que ,efectivamente, não podem jamais ser dadas como certas, que ignoram e escapam à verdade. Os problemas não se resolvem com um “devia ser assim” distante e utopicamente inalcançável; mas com um “é assim” atento à realidade e às armas que esta tem a doar à peleja.
Talvez por isso a esquerda seja amada e a direita desprezada (quando não odiada). É que, enquanto a primeira promete, a segunda avisa; enquanto uma idealiza de forma comovedoramente recta, justa e lustrosa; a outra pratica, intenta, executa. Dir-me-ão os leitores esquerdistas: “Mas fá-lo toscamente, de forma iníqua e imperfeita”. Que realidade querem mais tosca que a nossa, que imperfeição maior que o homem, que iniquidade maior que a inacção, a contemplação, o sonho e as promessas? “Que o bem se crê facilmente/ Quando anunciá-lo ouvimos/ E pelo contrário os danos/ Só os vemos quando os vimos.” – La Fontaine.
Desengane-se a plebe: prometer o bem não é o mesmo que fazê-lo. Como seria bom não pagar impostos, não lidar com o desumano desemprego; que não careçam os doentes de subsídios e os desafortunados de amparo! Tudo muito correcto: e quem paga tudo isso, os seus netos? os meus? E os subsídios aos nossos netos quem os paga?
Todos queremos pão, mas nem todos o trabalho.
E é bem sabido que é mais fácil prometer pão do que trabalho.

domingo, setembro 12, 2004

Turguenev

"A alma humana é um bosque profundo."

Um ditame Régio

Escreveu José Régio a páginas tantas do seu romance “O Jogo da Cabra Cega” que os defeitos que menos toleramos nos outros são os nossos que neles vemos espelhados. Assim como assim ninguém gosta do seu espelho quando nele se revelam implacáveis as marcas latentes da puberdade. A verdade é que a culpa não está no espelho, não é ele quem enferma desse mal que tão visceralmente todos (ou quase) somos obrigados a sofrer. Também eu reconheço, faço essa consciente mea culpa: não perdoo ver noutro que não eu a minha casual insegurança, os meus casuais dilemas, os meus “complexos e fantasmas”, que são, na verdade, a marca omnipresente e iniludível da minha humanidade. Mas já Nietszche alertava: tudo isto é humano, demasiado humano, pelo que, ajuizado por Régio alvitre, engulo o sapo da minha irritada individualidade, e acrescento mais uma complacência à minha lista de minudências acerca do que julgo ser o que os intelectuais gostam de denominar por “natureza humana”.