terça-feira, abril 19, 2005

Fumo branco?

E se o fumo branco ocultasse um Papa negro?
Eu pelo menos estou a torcer por isso!
Gostava de ver a reacção da facção conservadora e reaccionária da igreja, aquelas Donas de aldeia todas muito devotas, muito pias e muito Cristãs, desse seu Cristinho barbudo e maltrapilho, esquálido e muito branquinho... e que há mais de dois mil anos que anda com uma cruz às costas.
E a esquerda? Como reagiria a esquerda?
Os manos Portas passavam a trocar as suas actividades dominicais: o Paulinho lá iria barafustar e esbracejar contra... o que quer que fosse; já a horda, era vê-los todos devotos, Louçã no fim para não roubar protagonismo, de terço na mão, a contemplar o milagre ao vivo, ou não fosse a igreja o símbolo da revolução de Cristo!
Claro que nada disto aconteceria, para frustração da minha fantasia.
Antes uma coisa bem mais inesperada e nunca antes vista iria ter lugar: todos iriam ser muito hipócritas e achar que tudo era muito natural: Cristo lá continua, branquinho e imóvel para as Donas pias; e a igreja continua a ser o papão destruidor de consciências e do povo para a esquerdarrada radical.
Mas que raio! As fantasias não deviam servir como alternativa à realidade?

Cardeal Dunhill

Alguém escreveu um dia que "um homem forte impõe a sua vontade ao destino" e que "um homem fraco vê o destino impôr-lhe a vontade".
Ora troque-se a palavra "destino" pela palavra "cigarro"...
Tudo é pretexto, o descanso, a pausa, a emoção, a perguiça, o trabalho...
Assim vive uma comunidade suícida espalhada pelo globo, entre a qual infelizmente me incluo- que raio, sabe-me bem um cigarrito!
Somos assim uma espécie de Policarpos sem assento no vaticano, nós somos mais Cardeais Marlboro, Lucky Strike... Eu sou o Cardeal Dunhill...
Ah! e sou "papabili"... (mas só para as meninas)

"Cristo foi coroado com espinhos"...

Acaba de passar na TV o filme “As Sandálias do Pescador” baseado no livro homónimo de Morris West, considerado um romance profético por contar a história da coroação de um Papa de um país comunista de leste (Kiryl I da Ucrânia) 20 anos antes da coroação do Polaco Karol Wojtila.
O recém falecido Papa chegou mesmo a afirmar por mais de uma vez que o Australiano Morris West (que esteve ligado ao Vaticano tendo escrito inúmeros romances acerca da igreja bem como obras teleológicas) era o seu escritor de eleição, sendo este o seu livro preferido.
Apresenta o personagem uma complexa e comovente humanidade e uma inteligência viva, dinâmica e reformista- exteriorizada por episódios tão “sui generis” e cativantes como a passeata anónima do já eleito Papa por Roma- características a que são assemelhadas as qualidades humanas patentes em João Paulo II, como por exemplo a humildade simbólica de beijar os países por que passava.
A todos estes episódios, sem dúvida parecidos, que irmanam realidade e ficção são ainda ajuntados outros pormenores do personagem de West que o verdadeiro Papa parecia também possuir, numa tentativa de autenticar ainda mais o carácter profético do romance: assim ambos foram desportistas antes de papas, ambos introduziram uma nova era de abertura nas relações exteriores do Vaticano e ambos cativavam massas pelas sua imanente personalidade.
Porém uma diferença indisfarçável se impõe claramente como um buzinão incómodo apostado em fazer aterrar muita da fantasia urdida nesta comparação: não querendo exprimir (ainda) juízos de valor ou opiniões acerca da religião ou da igreja, a verdade é que o romance (pelo menos o filme nele baseado) acaba com um anúncio revolucionário e imprevisto do Papa aquando da cerimónia da sua coroação: o património total da igreja, as suas incontáveis riquezas e obras de arte inestimáveis serão vendidas, e o resultado dessa venda será entregue aos pobres de todo mundo para lhes mitigar a fome. A igreja despojar-se-á da sua materialidade e da sua pompa principesca para servir os fiéis que dela mais necessitam. Perante os aplausos do público jura Kyril I que jamais, sob circunstância alguma, renunciará à promessa declarada. “Cristo foi coroado com espinhos” afirma Kyril enquanto retira da cabeça a pesada coroa radiosa.
Esta coroa refulgente – afinal o símbolo do que de facto significa ainda hoje a igreja- ainda nenhum papa realmente pôs de parte. Nem é realista que alguma vez tal venha a ser feito.
Agora não me venham dizer que o livro é profético. A sua Utopia final não é mais que uma bela e agradável ficção. Tudo o resto são “faits divers”.

segunda-feira, abril 18, 2005

Saudação a Orland Gerald

Trata-se de um "poema" meu que já leva algum tempinho e que, vá-se lá saber porquê, decidi partilhar com a blogosfera. Não tenho ilusões acerca das minhas "faculdades" poéticas (que não tenho!). Mas na altura não pensava assim e era com amor fraterno às letras embuído do mais ardente espírito Pessoano que me aventurava nestas quimeras. Para ser sincero ainda o faço às vezes: dá-me gozo. É em homenagem ao benfazejo e ingénuo espírito poético que edito este post.
A circunstância do fedelho resume-se a uma manhã ensonada em que não tive aulas, e que alegremente esbanjei no Chiado.
Resta-me exortar à paciência e boa vontade do leitor: não se deve ser severo para com amadores.

"Manhã em Lisboa

Sento-me numa esplanada
ainda deserta
no coração adormecido da cidade...
Descrevo em palavras de papel
as desertas avenidas habitadas
e os pequenos transeuntes
ainda intorpecidos pelo vento
da manhã.
Parece-me que por momentos
a cidade e esquece de quem é,
e Lisboa matutina sepulta descuidada
a sua identidade.
O ruído está esquecido
entre a brisa visível e as pedras
ainda por calcar

Contudo a cidade é vida
e o seu frémito cresce,
busca o fumo dos cafés,
a sodoma dos pedintes,
e o anelo barroco
das luzes natalícias.
Então, como uma horda de formigas agitadas,
correm as pessoas a preencher os lugares do costume,
mulheres emanando fragâncias,
noite, vícios e ambição...
personagens de odores instalam-se
sobre o calvo sol da manhã

O ruído habitual recomeça a sua senda interminável,
polui por direito o ar da manhã,
Mas que importância isso tem?
O quadro em movimento,
essa obra viva do comum citadino,
configura-se em total plenitude
e no espaço de pouco minutos
a urbe resplandesce em vitalidade.

O cheiro pestilento dos mendigos,
os perfumes banais da burguesia "channel",
o mofo azedo das casas de fado,
em Pessoa...
unificando-se num todo.
A rua é o albergue do povo,
do fumo de escape dos carros,
mais o suor dos quartos fechados,
o néon adormecido das fachadas fulgentes
Esse universo prosaico e tangível...

Lisboa acordou e perfilhou-se para o dia,
a brisa corre agora mais ténue
entre a pessoa e o espaço vazio,
em alinho de parada,
prestam-se as pedras a serem pisadas

A horda é o sangue da cidade
e o seu pulsar é ritmado
guitarras em semi-fusa,
pianos atonais,
o nexo é o padrão morto do pensamento.

Quando a manhã subir
e o sol se tornar claro
a cidade vai cheirar a fogo;
depois acalmará o vento
o lume agreste do perpétuo meio-dia;
mais tarde virá do pulso do astro
reclamar as cores a palidez faminta,
e o manto púrpura deste epílogo
adensar-se-á em negritude e exotismo.
A cidade não guarda tempo para dormir,
sua vitalidade recobra da lua o fôlego,
Constelações... corpos por agitar...
os lobos acorrem à rua com o seu uivo mudo,
com soberba nos corpos e fome no olhar
o ritual reemerge das volúpias da memória
Busca novos contornos,
novos cheiros e novas forças,
até que a lua se ponha.

17/2/02"

Contraditório?

"Nunca discuta, não convença ninguém; as opiniões são como os pregos; quanto mais se martelam mais se enterram." - A. Dumas (Filho).
Está explicada a razão porque não há comments no meu blog.
(A outra razão é porque ninguém o lê... mas isso fica aqui entre nós...)

Portugal é grande!

Basta ir ao Almada Fórum uma vez por outra e dar um saltinho às lojinhas de roupa.
Lá dentro meninas inocentes giram azafamadas como abelhinhas para ver o novo saiote e o novo top decotados. Andam em indumentárias quase tribais, porque aquilo é só natureza e as suas maminhas em clausura têm um jeito irresistível de nos saltar olhos adentro. Mas elas só querem é moda, nem reparam que as maminhas estão prali apertadinhas e tristes! Todos nós sabemos que é sem querer.
E aquelas perninhas gingantes a bambolear em artística e casta – claro, todos o sabemos! – descompostura…Tadinhas!
Nada há de mais cândido do que esta imaculada meiguice!
Como assevera sabiamente João Perrotta: “Portugal é grande!”

A Sabedoria da Sócrates

A sabedoria pode manifestar-se muito prosaicamente.
Sócrates manifesta-a no silêncio, que não o compromete.
Neste aspecto dá a Santana Lopes uma lição que este, temo, nunca assimilará, uma vez que o seu gosto intratável pelas objectivas começa a ser penosamente confragedor (pelo menos para mim que até gosto do homem).
E foi comprometedor. À confiança esbanjada com os jornalistas deve - creio- muito do descalabro eleitoral recente.
Às vezes a palavra é de prata e o silêncio é de ouro.

A surdez de Beethoven

Aparentemente Beethoven volta a estar na moda. Na verdade Beethoven parece nunca sair de moda, o mito do génio surdo e misantropo instalou-se defenitivamente no ideário ocidental. Ainda bem.
Não me refiro à suposta “moda Beethoven” no sentido "intelectual de café" (de esquerda) que gosta do ar destrambelhadamente absorto e revoltadamente pueril do Mestre- ainda que desse desmazelo aparente com a materialidade da vida resulte uma parte inegável do seu carisma. Ser grande implica também as presunções levianas que os pequenos tecem à sombra dessa grandeza.
Mas Beethoven é e será sempre um ícone. É um facto. É uma espécie de Einstein na música. Porquê?
Beethoven é antes e acima de tudo intemporal, imortal e portanto não pode passar de moda. Pelo menos a sua música é-o. Mas o público parece dedicar também especial atenção ao seu carácter, ao seu inconformismo, à sua revolta, aquele "não encaixar bem" nas convenções, aquela animalidade latente, perigosa e cómica. Beethoven é uma parte de nós que guarda ainda a memória da criança injustiçada pelo castigo imerecido, uma zona de sentimentos fortes e de paroxismos de sensibilidade. A isto alia uma faculdade de expressão de recursos ilimitados. A sua música é o reflexo mais impressionantemente conciso do que era o seu carácter: elevado, digno, de uma hombridade inusitada, um sofredor hipersensível com a leviandade aristocrática de salão e da burguesia mundana, despreocupada e inútil. Era um escravo da sua integridade, um convicto e ingénuo repúblicano e um idealista confuso mas convertido pelas máximas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a que jura reverência no mais fundo da sua alma.
A sua música pode ser leve ou densa, suave ou possante, descomprometida ou submersa em paixões, mas jamais é leviana: ela não é o que somos, é um Ideal, uma utopia sentimental de perfeição e elevação que concretizada nas suas partituras violentamente rabiscadas- é aquilo que deveríamos ser, ou que quereríamos ser, mas para tanto nos falta em vontade o que nos sobra em "humanidade" (que compreende o fútil, o supérfluo e o natural saturamento apanágio da preguiça).
A perfeição de Beethoven não é a perfeição fácil e divina de Mozart, é uma perfeição árdua, carregada de esforço e agruras (a 5º sinfonia ocupou-lhe 10 anos e 40 cadernos enquanto que Mozart escreveu aberturas numa madrugada!)
Os obstáculos são apenas aquilo que temos de ultrapassar. Sem rochedos as vagas subiriam tão alto?
E Beethoven sobe até ao cume.
Ouvindo a marcha fúnebre dessa obra-prima das Eras, a “Heróica”, apercebe-se que a mais genuína e trágica surdez de Beethoven era uma surdez antropológica e metafísica, mais importante e impressionante que a própria surdez física.
Ele começa do zero, ainda que conheça bem a obra dos mestres do passado como Bach, Haendel, Haydn e Mozart; porém destrói os alicerces melódicos, harmónicos e formais das suas conquistas e amplia-os, insuflando neles uma alma, calor e expressividade inauditas. As fundações vão abaixo, as cadências mudam, a melodia expande-se em possibilidades inimagináveis até então, a gama de sentimentos musicais possíveis de exprimir é completa e a sua obra diz tudo o que há para ser dito.
É este edificar renovado, esta predisposição mental para a criação pura, liberta de influências que não as da técnica, que abrem horizontes, iluminam caminhos, trilhando estoicamente no desconhecido… Beethoven é um aventureiro das quimeras impossíveis. Esta imperatividade intelectual para a originalidade e para o futuro fazem deste homem a encarnação da Força, da Inteligência, e Criação e convertem a sua obra em Poder, Inspiração e Visão.
A verdadeira surdez de Beethoven não é a surdez celebérrima que o público descobre na estreia da impressionante Sinfonia Coral em que as palmas comovidas de um auditório em pé lhe passam despercebidas por estar de frente para o palco. A sua surdez é a surdez umbiguista do génio revolto que em si apenas busca o que sabe que só ele lhe pode dar.
Quem é afinal o surdo?
A surdez dos homens para com Beethoven é a porta da sua alma fechada à Eternidade.
A surdez de Beethoven para com os homens é o ouvido aberto da sua alma aos Deuses.