Aparentemente Beethoven volta a estar na moda. Na verdade Beethoven parece nunca sair de moda, o mito do génio surdo e misantropo instalou-se defenitivamente no ideário ocidental. Ainda bem.
Não me refiro à suposta “moda Beethoven” no sentido "intelectual de café" (de esquerda) que gosta do ar destrambelhadamente absorto e revoltadamente pueril do Mestre- ainda que desse desmazelo aparente com a materialidade da vida resulte uma parte inegável do seu carisma. Ser grande implica também as presunções levianas que os pequenos tecem à sombra dessa grandeza.
Mas Beethoven é e será sempre um ícone. É um facto. É uma espécie de Einstein na música. Porquê?
Beethoven é antes e acima de tudo intemporal, imortal e portanto não pode passar de moda. Pelo menos a sua música é-o. Mas o público parece dedicar também especial atenção ao seu carácter, ao seu inconformismo, à sua revolta, aquele "não encaixar bem" nas convenções, aquela animalidade latente, perigosa e cómica. Beethoven é uma parte de nós que guarda ainda a memória da criança injustiçada pelo castigo imerecido, uma zona de sentimentos fortes e de paroxismos de sensibilidade. A isto alia uma faculdade de expressão de recursos ilimitados. A sua música é o reflexo mais impressionantemente conciso do que era o seu carácter: elevado, digno, de uma hombridade inusitada, um sofredor hipersensível com a leviandade aristocrática de salão e da burguesia mundana, despreocupada e inútil. Era um escravo da sua integridade, um convicto e ingénuo repúblicano e um idealista confuso mas convertido pelas máximas de Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a que jura reverência no mais fundo da sua alma.
A sua música pode ser leve ou densa, suave ou possante, descomprometida ou submersa em paixões, mas jamais é leviana: ela não é o que somos, é um Ideal, uma utopia sentimental de perfeição e elevação que concretizada nas suas partituras violentamente rabiscadas- é aquilo que deveríamos ser, ou que quereríamos ser, mas para tanto nos falta em vontade o que nos sobra em "humanidade" (que compreende o fútil, o supérfluo e o natural saturamento apanágio da preguiça).
A perfeição de Beethoven não é a perfeição fácil e divina de Mozart, é uma perfeição árdua, carregada de esforço e agruras (a 5º sinfonia ocupou-lhe 10 anos e 40 cadernos enquanto que Mozart escreveu aberturas numa madrugada!)
Os obstáculos são apenas aquilo que temos de ultrapassar. Sem rochedos as vagas subiriam tão alto?
E Beethoven sobe até ao cume.
Ouvindo a marcha fúnebre dessa obra-prima das Eras, a “Heróica”, apercebe-se que a mais genuína e trágica surdez de Beethoven era uma surdez antropológica e metafísica, mais importante e impressionante que a própria surdez física.
Ele começa do zero, ainda que conheça bem a obra dos mestres do passado como Bach, Haendel, Haydn e Mozart; porém destrói os alicerces melódicos, harmónicos e formais das suas conquistas e amplia-os, insuflando neles uma alma, calor e expressividade inauditas. As fundações vão abaixo, as cadências mudam, a melodia expande-se em possibilidades inimagináveis até então, a gama de sentimentos musicais possíveis de exprimir é completa e a sua obra diz tudo o que há para ser dito.
É este edificar renovado, esta predisposição mental para a criação pura, liberta de influências que não as da técnica, que abrem horizontes, iluminam caminhos, trilhando estoicamente no desconhecido… Beethoven é um aventureiro das quimeras impossíveis. Esta imperatividade intelectual para a originalidade e para o futuro fazem deste homem a encarnação da Força, da Inteligência, e Criação e convertem a sua obra em Poder, Inspiração e Visão.
A verdadeira surdez de Beethoven não é a surdez celebérrima que o público descobre na estreia da impressionante Sinfonia Coral em que as palmas comovidas de um auditório em pé lhe passam despercebidas por estar de frente para o palco. A sua surdez é a surdez umbiguista do génio revolto que em si apenas busca o que sabe que só ele lhe pode dar.
Quem é afinal o surdo?
A surdez dos homens para com Beethoven é a porta da sua alma fechada à Eternidade.
A surdez de Beethoven para com os homens é o ouvido aberto da sua alma aos Deuses.