O Julgamento
I.
A tarde espalhava um sol soalheiro e preguiçoso sobre a cidade, convidando ao refresco e ao despreocupado repasto. Sempre gostei dessas tardes na baixa da cidade em que um ameno e tranquilo pôr do sol nos degusta frugalmente a disposição em anquilosado e deleitoso “rien faire”.
Mas não: ia eu apenas subindo apressada e atabalhoadamente as escadarias nobres e dignas que conduzem ao “Templo da Justiça” da Capital– a objectiva saltaricarando no meu peito baques incómodos, o caderno de notas sempre em vias de cair – . Tinha de fazer sozinho a cobertura do afamado julgamento para “A Gazeta da Semana” e para tanto me faltava o interesse, pois desconhecia em completo que raio de julgamento era esta. De uma coisa estava certo, em toda a cidade não se falava de outra coisa, todos entoavam nos cafés, restaurantes, nas praças (chegou até a aparecer anunciado no telejornal) este extravagante julgamento, sem que porém ninguém soubesse esclarecer quem quer que fosse acerca de que tipo de assunto se iria ali tratar.
Quem iria ser julado ou porquê? Jamais perceberei este insolito e demente interesse.
Tanto bruá não me deixava curioso, apenas vagamente entediado, e era com anelo e sacrifico que pensava no meu plácido e impagável entardecer temperado de cerveja e muito sossego.
Mas era trabalho.
O “Templo”é um edifico austero e digno, masjestaticamente irreal e sólido. Para os meus colegas era apenas uma bela a misteriosa peça de arquitectura. Para mim porém sempre foi como um irmão mais velho ou um pai zeloso que cuida imperceptível e fielmente de nós, sereno e confiante... absoluto. Gostava tanto do Tempo que era quase medo a única sombra de sentimento que experimentei ao lá entrar, lá onde não teria pelas costas essa força imorredora e omnipresente para me protejer. Estranho e histérico paradoxo, mas bem real. No Templo não há lugar para o erro, a confiança é total e a sua moral infalível. Para todos os habitantes da cidade, o "Templo" é a verdade.
Olhei perdida e absortamente para todos quantos lá estavam enquanto. Além uma família de bons modos e bons costumes, o cão não pode entrar infelizmente para a filha mais nova... a D. há-de-ter-um-nome da padaria, o coronel reformado e viúvo, o velho misantropo e filantrópico- diz-se- que vive num quarto de aluguer, mas com fortuna... até os ateus da sociedade vieram, a massa de todos os dias e os alienados das convenções... quem sabe se da razão? todos vieram... um clima de antologia, o dia será inolvidável!
Entrei e instalei-me com dificuldade na sala atulhada e transpirada. O bruá era tamanho que eu podia ouvir distintamente o chorrilho de apostas que eram cuspidas do outro lado da sala:
- Inocente claro!
- Qual quê meu caro! Não tem safa, aqui ninguém tem safa!
E num outro canto mais distante:
- Roubo já disse… roubo!
- Roubo de quê?
- Roubo já disse! Não interessa…é roubo!
-Mas que raio, não estaria aqui se fosse roubo! O “Templo da Justiça!” só funciona para assuntos importantes. Roubos há muitos…
- Matou alguém do Estado!
-Alguém da bola!
- Alguém do mundo VIP!
- Mas isso é terrível!
- Aposto nisso!
- Também eu!
- Eu entro nessa!
- Que escândalo! Alguém famoso ele deve ter morto…
Eis que subitamente um oficial de justiça trajando de negro e caminhando devagar, solenemente declara:
- Está aberta a Sessão.
E fez-se silêncio.