terça-feira, maio 03, 2005

O Julgamento

I.
A tarde espalhava um sol soalheiro e preguiçoso sobre a cidade, convidando ao refresco e ao despreocupado repasto. Sempre gostei dessas tardes na baixa da cidade em que um ameno e tranquilo pôr do sol nos degusta frugalmente a disposição em anquilosado e deleitoso “rien faire”.
Mas não: ia eu apenas subindo apressada e atabalhoadamente as escadarias nobres e dignas que conduzem ao “Templo da Justiça” da Capital– a objectiva saltaricarando no meu peito baques incómodos, o caderno de notas sempre em vias de cair – . Tinha de fazer sozinho a cobertura do afamado julgamento para “A Gazeta da Semana” e para tanto me faltava o interesse, pois desconhecia em completo que raio de julgamento era esta. De uma coisa estava certo, em toda a cidade não se falava de outra coisa, todos entoavam nos cafés, restaurantes, nas praças (chegou até a aparecer anunciado no telejornal) este extravagante julgamento, sem que porém ninguém soubesse esclarecer quem quer que fosse acerca de que tipo de assunto se iria ali tratar.
Quem iria ser julado ou porquê? Jamais perceberei este insolito e demente interesse.
Tanto bruá não me deixava curioso, apenas vagamente entediado, e era com anelo e sacrifico que pensava no meu plácido e impagável entardecer temperado de cerveja e muito sossego.
Mas era trabalho.
O “Templo”é um edifico austero e digno, masjestaticamente irreal e sólido. Para os meus colegas era apenas uma bela a misteriosa peça de arquitectura. Para mim porém sempre foi como um irmão mais velho ou um pai zeloso que cuida imperceptível e fielmente de nós, sereno e confiante... absoluto. Gostava tanto do Tempo que era quase medo a única sombra de sentimento que experimentei ao lá entrar, lá onde não teria pelas costas essa força imorredora e omnipresente para me protejer. Estranho e histérico paradoxo, mas bem real. No Templo não há lugar para o erro, a confiança é total e a sua moral infalível. Para todos os habitantes da cidade, o "Templo" é a verdade.
Olhei perdida e absortamente para todos quantos lá estavam enquanto. Além uma família de bons modos e bons costumes, o cão não pode entrar infelizmente para a filha mais nova... a D. há-de-ter-um-nome da padaria, o coronel reformado e viúvo, o velho misantropo e filantrópico- diz-se- que vive num quarto de aluguer, mas com fortuna... até os ateus da sociedade vieram, a massa de todos os dias e os alienados das convenções... quem sabe se da razão? todos vieram... um clima de antologia, o dia será inolvidável!
Entrei e instalei-me com dificuldade na sala atulhada e transpirada. O bruá era tamanho que eu podia ouvir distintamente o chorrilho de apostas que eram cuspidas do outro lado da sala:
- Inocente claro!
- Qual quê meu caro! Não tem safa, aqui ninguém tem safa!
E num outro canto mais distante:
- Roubo já disse… roubo!
- Roubo de quê?
- Roubo já disse! Não interessa…é roubo!
-Mas que raio, não estaria aqui se fosse roubo! O “Templo da Justiça!” só funciona para assuntos importantes. Roubos há muitos…
- Matou alguém do Estado!
-Alguém da bola!
- Alguém do mundo VIP!
- Mas isso é terrível!
- Aposto nisso!
- Também eu!
- Eu entro nessa!
- Que escândalo! Alguém famoso ele deve ter morto…
Eis que subitamente um oficial de justiça trajando de negro e caminhando devagar, solenemente declara:
- Está aberta a Sessão.
E fez-se silêncio.

Século da Imagem

Para o bem e para o mal este é o século da imagem, dizia Andre Malraux qualquer coisa como isto. Isso é perigosamente verdade. Outros séculos tiveram mais aforunado substrato: o poder, o talento ou o trabalho.
Na era em que vivemos tudo isto se resume à imagem: condição régia para se singrar, pelo menos em actividades públicas, e claro do entretenimento.
Isso é gravíssimo e às vezes, como hoje, deixa-me mais triste que indiferente ou revoltado. Exprime não um vício ou uma vileza especialmente condenável no Homem, mas apenas- o que é mais claustrofóbico e entristecedor- a sua natureza.
Também eu presto um culto desabrabrido e obsceno a essa plasticidade enfatuada, a essa falaz beleza: lúxuria labrega.

Idealismo vs. Pragmatismo

A primeira pedra de Auschwitz começou a ser emparelhada da boca de Hitler, anos antes da sua construção real.

Senso nu

Latejam-me as fontes, lateja-me o pensamento. Este momento tão sem-nexo, tão absurdo e sentimental, é um nada fátuo e vazio, nem mesquinha consolação, nem sombra de pensamento. Somente uma hipertrofia sensitiva, tensa e aflita, inútil e asfixiante, esfusiante, opressora. Abri a porta à beleza e à dor, ao amor de todas as coisas, à inconsequente e destrambelhada felicidade. Uma felicidade disléxica e manca, sem defesa.
Mas estou assim possuído, confusa e infantilmente possuído, Pessoído, entregue ao sentimento fugaz, abandonado a um ostracismo universal.
“As dores do Mundo” no dizer dos alemães- és isto que eu sinto;tu me pega pelos tornozelos da alma até ao céu de abismo e cândida efermidade. Corrupio, confusão, agitação e vazio…. inocente e plácido, implacável e estúpido. É uma morte sem rosto, como a Morte, mas ao mesmo tempo é a vida e o desalento histérico das sensações conjuntas.
Logicamente e metafisicamente nada; um arco-íris sensorial inflamado e frio, contrário, complexo e despido.
Dizem que Brahms queria abraçar o mundo inteiro… que bela e infantil quimera, que desvario tão sumptuoso, singelo, paternal e pertencioso, comovedoramente idiota. Não literalmente mas espiritualmente, intuidamente… quanta beleza nas sensações.
Bombas, bombas, bombas… quanto coaos ordenado!... afrodisíaco apocalipse, um orientalismo extravagante da consciência, uma afronta fétida e suave à razão!
Uma guerra estoura lá fora… uma guerra na minha cabeça pelo menos… uma guerra sem soldados, sem mortos e sem generais, bombas apenas. Bombas e fogo, riso e comedimento, não é a desmesura a medida dos sonhos, eles são afáveis, aprazivelmente clássicos e agradavelmente comedidos.
Assobiam as bombas como flautas. São um entretenimento, um pouco perigoso talvez, mas tão maravilhosamente inconsequente…
É doce poder brincar assim com este fogo imaginário, não real, antes previsto... flama literária e ancestral: chama que não queima só aquece…
Como é bom ver essas bombas, a ti o digo: tu que brincas despreocupado e leve… ouves o troar como eu o ouço? Não te fazem as chamas tremer a alma e suar o corpo como a mim? Não as vês como eu, ali ao fundo ao pé daquela despreocupada criança? Além perseguindo aquele velho absorto? Não sentes o cheiro a fogo, a carne, a caos, a descontrolo?
Não sentes como eu medo deste fogo? Não te sobem ao cérebro vómitos de um indómito, inenarável e primitivo horror? esse horror inefável e ilógico, despido de sorte e de contexto?
Não te queima nas entranhas do abismo e da animalidade? Onde está a marca visível desse fumo fétido e tangível?
Não a sentes como eu?
Diz-me então quem és, serás tu também um Homem como eu sou?
Se é vida, se é morte eu não sei, mas horroriza-me ao até ao mais fundo de mim, até aos alicerces do meu poço de inteligentsia- que é onde começa a torpe e desejada inconsciência: a anestesia da dor e do belo, a capa do possível…
Tu como eu o sentes, sim eu sei. Tu como eu tens medo e és criança no escuro. Tu como eu te drogas de realidade, de possibilidade e de verosimilhança. Talvez não acordes à noite como eu, mas como eu tudo isto já sentiste.
Ergue-te irmão, despede-te desse sonho vão, abandona sentimentalmente as tuas ilustações e solta furtivamente a tua gnose: é chegada a hora...
Acorda!

Abdulyasser